Saúde sob assinatura: o avanço da medicina concierge e o colapso silencioso da atenção primária
Em tempos de escassez, surgem soluções que atendem a poucos — e excluem muitos. Este parece ser o caso da medicina concierge, uma modalidade de atendimento médico que ganha tração nos Estados Unidos ao mesmo tempo em que o sistema de atenção primária enfrenta uma das maiores crises de sua história recente.
A premissa da medicina concierge é simples e sedutora: por uma taxa mensal ou anual, pacientes ganham acesso direto e personalizado a um médico — consultas mais longas, comunicação facilitada por mensagens de texto e até atendimento no mesmo dia. O modelo, que inicialmente parecia reservado a elites urbanas, agora avança para áreas rurais e suburbanas, onde a falta de médicos generalistas tornou-se crônica. No entanto, sua popularização revela não uma solução sistêmica, mas um remédio privatizado e seletivo para um problema estrutural.
Um sistema doente
O sistema de saúde americano há tempos opera sob tensões financeiras e funcionais. Com uma das maiores proporções de gasto per capita em saúde do mundo, os Estados Unidos ainda convivem com profundas desigualdades no acesso e na qualidade do atendimento. A atenção primária, pilar essencial de qualquer sistema eficaz, sofre particularmente com falta de incentivo, esgotamento profissional e remuneração inferior à de especialidades.
Segundo estimativas da Associação Americana de Faculdades de Medicina, o país poderá enfrentar um déficit de mais de 86 mil médicos até 2036, sendo a maior parte deles na atenção primária. Em zonas rurais, os efeitos dessa escassez já são visíveis: clínicas sobrecarregadas, longas esperas por consultas, diagnósticos atrasados e um colapso silencioso na prevenção de doenças.
É nesse vácuo que a medicina concierge cresce. Médicos pressionados por sistemas de saúde ineficientes — marcados por burocracias, metas inalcançáveis e agendas lotadas com 20 ou mais pacientes por dia — veem nesse modelo uma forma de retomar o controle sobre sua prática e oferecer um cuidado mais humano. Para os pacientes que podem pagar, trata-se de um alívio. Para os demais, um novo muro.
Atenção premium em um deserto médico
O caso de clínicas como a Noble Health Alliance, no Missouri, ilustra as contradições do momento. Enfrentando escassez de profissionais e limitações orçamentárias, parte da equipe médica migrou para modelos de assinatura. Em troca de mensalidades que variam entre US$ 50 e US$ 200, os médicos agora atendem um número significativamente menor de pacientes — algo entre 200 e 600, contra os 2.000 a 3.000 de uma clínica tradicional.
Do ponto de vista da qualidade assistencial, os resultados são positivos. Médicos relatam maior satisfação no trabalho, maior capacidade de investigar com profundidade e estabelecer vínculos com os pacientes. No entanto, cada vaga aberta na medicina concierge representa, por definição, milhares de pacientes que deixam de ter acesso àquele profissional, intensificando a crise nos sistemas públicos e comunitários já fragilizados.
A situação é especialmente delicada em estados do meio-oeste e sul dos EUA, onde a combinação de pobreza, envelhecimento da população e baixa densidade médica torna a saúde básica uma corrida de obstáculos. Para esses pacientes, o modelo concierge pode significar não apenas exclusão financeira, mas total ausência de alternativas viáveis.
Solução ou sintoma?
Defensores da medicina concierge argumentam que o modelo, embora elitizado, cria sustentabilidade para a carreira médica, evita o êxodo de profissionais e reduz o burnout. De fato, há evidências de que médicos que adotam esse formato permanecem mais tempo na prática e relatam maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Contudo, tratar o concierge como solução seria confundir eficiência individual com solução coletiva. Ao permitir que médicos abandonem o atendimento convencional — frequentemente mal remunerado por seguros públicos e privados — para cuidar de uma minoria que pode pagar mais, o modelo privatiza ainda mais um sistema já profundamente desigual. O risco, dizem especialistas em políticas públicas, é criar um cenário de “duas Américas da saúde”: uma para quem pode pagar pelo privilégio da proximidade, e outra relegada a pronto-socorros e filas.
Além disso, há uma preocupação ética crescente: ao tornar o cuidado primário um bem escasso e negociado via assinatura, o sistema perde sua função essencial de ser a porta de entrada universal da saúde. A lógica de mercado substitui a lógica do cuidado populacional.
Caminhos possíveis
A resposta a essa crise multifacetada não é trivial. Reverter a escassez de médicos exige tempo, investimento e reformas estruturais. Incentivar estudantes de medicina a seguirem carreira na atenção primária requer revisão dos modelos de financiamento e valorização profissional — incluindo melhores salários, incentivos para atuação em áreas remotas, e ambientes de trabalho mais sustentáveis.
A telemedicina, que teve grande avanço durante a pandemia, surge como uma das alternativas mais promissoras. Ela permite estender a presença clínica a territórios remotos e otimizar o tempo dos profissionais disponíveis. Contudo, sua eficácia depende de conectividade, educação digital e regulamentações claras — nem sempre presentes em comunidades mais carentes.
Outra vertente de resposta está na reorganização de equipes multiprofissionais, com maior participação de enfermeiros, técnicos e agentes comunitários de saúde em funções tradicionalmente médicas. Isso já acontece com sucesso em países como o Reino Unido e o Canadá, e poderia aliviar parte da pressão sobre os clínicos gerais nos EUA.
Finalmente, é necessário repensar o próprio modelo de remuneração da saúde americana, hoje baseado majoritariamente em volume de procedimentos. Sistemas baseados em valor — que remuneram por resultados clínicos e prevenção — poderiam tornar a atenção primária mais atraente e menos dependente de jornadas extenuantes.
O que está em jogo
A medicina concierge, apesar de oferecer alívio pontual para alguns médicos e pacientes, representa um sintoma da falência sistêmica da atenção primária nos Estados Unidos. Ao transformar o acesso básico em privilégio, o modelo arrisca consagrar uma divisão estrutural no cuidado: um sistema de luxo para poucos e um sistema colapsado para o resto.
O desafio, portanto, não é apenas moral ou político — é estratégico. Sem uma atenção primária forte, universal e acessível, os custos da saúde aumentam, a qualidade geral do atendimento diminui, e as desigualdades se aprofundam. Ao invés de romantizar soluções individuais, os formuladores de políticas públicas devem encarar de frente a realidade: só haverá saúde sustentável se houver acesso para todos, e não apenas para quem assina.