Se 90% dos infartos são previsíveis, por que não estamos os prevendo?
Durante décadas, o infarto agudo do miocárdio — popularmente conhecido como ataque cardíaco — foi tratado como um evento súbito, quase aleatório. Uma fatalidade. Algo que, quando ocorre, exige intervenção imediata e de alta complexidade: desfibriladores, cirurgias de emergência, UTIs lotadas. A medicina moderna organizou-se ao redor da resposta. Mas e se estivermos atacando o problema pelo lado errado?
Hoje sabemos que a maioria dos infartos é previsível. E, o que é ainda mais desconcertante: também são amplamente evitáveis.
Estudos como o Framingham Heart Study, iniciado nos anos 1950 e ainda em andamento, ou o INTERHEART, que analisou populações de 52 países, mostram conclusivamente que mais de 90% dos infartos estão associados a fatores de risco conhecidos: colesterol alto, hipertensão, diabetes, tabagismo, obesidade, sedentarismo e estresse crônico.
Ou seja, já não se trata de descobrir o que causa um infarto. Trata-se de entender por que, mesmo conhecendo os riscos, falhamos sistematicamente em prever e evitar que ele ocorra.
O paradoxo da previsibilidade
O setor de saúde, em quase todos os países, opera sob um modelo de atenção reativa. Médicos são procurados quando há sintomas. Exames são feitos quando o paciente já apresenta sinais de que algo está errado. E a maior parte dos recursos é direcionada para tratar consequências — não causas.
No caso dos infartos, isso significa que bilhões de dólares, reais ou euros são gastos anualmente com angioplastias, pontes de safena, internações e reabilitação. Enquanto isso, exames simples como um painel lipídico, uma medição de pressão arterial, ou até um escaneamento de cálcio coronariano — que podem prever com boa precisão o risco de um infarto nos próximos 5 a 10 anos — seguem subutilizados.
O resultado é uma ironia cruel: temos os dados, os meios e o conhecimento para prever ataques cardíacos com relativa precisão, mas o sistema, como um todo, prefere pagar a conta depois que o dano já foi feito.
A desculpa da imprevisibilidade
Os defensores do status quo apontam que nem todos os infartos seguem o roteiro clássico. Alguns ocorrem em pessoas aparentemente saudáveis. Outros se manifestam de forma silenciosa, sem dor no peito ou sinais claros. De fato, cerca de 50% dos pacientes que sofrem um infarto não tinham sintomas prévios significativos.
Mas esse argumento, embora real, não invalida a previsibilidade populacional do evento. Ele apenas destaca a ineficácia de uma abordagem exclusivamente sintomática. A medicina de precisão e a ciência dos dados nos permitem enxergar além do visível. Se a tecnologia é capaz de prever falhas em motores de aviões, por que não conseguimos fazer o mesmo com artérias humanas?
Um sistema construído para intervir — não para prevenir
Parte do problema está no modelo de incentivos. A medicina preventiva, apesar de seu impacto positivo em longo prazo, gera menos receita imediata do que intervenções agudas. Um check-up custa algumas centenas de reais. Uma cirurgia cardíaca, dezenas de milhares.
Além disso, os dados dos pacientes vivem em silos. Informações sobre pressão arterial, hábitos alimentares, exames laboratoriais e histórico familiar estão espalhadas entre clínicas, hospitais, planos de saúde e apps de celular — muitas vezes sem integração, interoperabilidade ou análise inteligente.
Pior: mesmo quando esses dados estão disponíveis, faltam sistemas de apoio à decisão clínica baseados em inteligência artificial que consigam identificar padrões de risco, oferecer alertas precoces ou orientar condutas proativas. A medicina continua, em boa parte, baseada na memória, julgamento e intuição dos profissionais — e não em algoritmos ou análises preditivas robustas.
A promessa (não realizada) da saúde digital
Nos últimos anos, surgiram dezenas de startups e soluções em saúde digital prometendo revolucionar o setor com IA, big data e medicina personalizada. Algumas evoluíram. Muitas outras viraram apenas mais um canal para agendar consultas ou acessar exames online.
A verdadeira transformação ainda não aconteceu porque ela exige integração sistêmica — e não apenas inovação isolada. Prever infartos de maneira eficaz não depende apenas de bons algoritmos, mas de uma arquitetura de saúde conectada, interoperável e voltada para o cuidado contínuo.
Imagine um modelo no qual:
Cada paciente de risco fosse monitorado em tempo real por sensores vestíveis;
Os dados fossem coletados, analisados e cruzados automaticamente com histórico clínico e genético;
Um sistema de IA enviasse alertas preventivos e sugestões personalizadas de conduta ao paciente e ao médico;
E onde o incentivo econômico estivesse atrelado à prevenção de eventos graves, e não à sua remediação.
Esse sistema não é ficção científica. Já existem elementos técnicos e clínicos para construí-lo. O que falta é vontade institucional, redesenho regulatório e alinhamento de incentivos.
A urgência de mudar
As doenças cardiovasculares continuam sendo a principal causa de morte no mundo. Estima-se que mais de 17 milhões de pessoas morram por ano de doenças cardíacas — um número superior às mortes por câncer, acidentes de trânsito e violência combinados.
E no entanto, as ferramentas para reduzir dramaticamente esse número já existem. O que falta é uma mudança de mentalidade: parar de tratar infartos como acidentes imprevisíveis e começar a encará-los como falhas de sistema.
Conclusão: prevenir é poder
A frase “ele parecia tão saudável” continuará ecoando em consultórios e funerais enquanto insistirmos em um modelo de saúde que responde, em vez de prever.
Precisamos sair do paradigma da surpresa e entrar no da vigilância inteligente. Porque o futuro da cardiologia — e da medicina como um todo — não está em fazer melhores cirurgias, mas em evitar que sejam necessárias.
E nesse futuro, não haverá espaço para desculpas. Quando o risco é previsível, a omissão deixa de ser um erro: passa a ser negligência.